Mil faces da interdependência

Hoje, sinto-me muito à vontade ao analisar, junto com vocês e a partir de muitas perspectivas, os milhares aspectos da interdependência que desejamos focalizar juntos para compreendermos melhor como orientá-la para o bem da família humana.

Na parte que me cabe, gostaria de evidenciar um aspecto da interdependência já mencionado na minha mensagem de adesão à primeira Jornada, no dia 12 de setembro de 2003, em Filadélfia. Trata-se do seguinte: a interdependência faz despontar no coração de muitos a vontade de realizar o imprescindível e necessário ideal, a favor do qual pessoas de boa vontade, espalhadas no mundo inteiro, decidiram empregar a própria vida: a fraternidade universal, um instrumento para atuar a unidade da família humana.

Sim, porque interdependência significa inter-relação entre dois elementos que se condicionam reciprocamente. Essa relação só poderá ser atuada perfeitamente, entre os indivíduos e entre os Estados, se for caracterizada pelo respeito recíproco, pela compreensão recíproca, por saber deixar espaço para as dificuldades, os problemas uns dos outros, a fim de acolher os respectivos dons. Enfim, deve ser caracterizada pelo amor mútuo, tal como entre irmãos verdadeiros.

A interdependência fraterna comporta, de fato, a escolha do diálogo e não da hegemonia, do caminho da partilha e não da concentração de recursos e das ciências numa única área do mundo.

A interdependência fraterna é realmente “mútua dependência”, porque implica que a afirmação da minha identidade não pode se dar nem por defesa, nem por oposição, mas através da comunhão: dos recursos, das virtudes cívicas, das características culturais, das experiências políticas-institucionais.

As minhas não são unicamente palavras; são o fruto da experiência do Movimento dos Focolares, do qual participo, efeito de um carisma do Espírito Santo: Movimento multicultural, multiétnico, multireligioso, difundido em 182 países, com milhões de aderentes, cujo objetivo é a fraternidade, ainda mais, a fraternidade universal.

11 de setembro: paradoxalmente a possibilidade de um passo adiante rumo à fraternidade universal

Essa mesma experiência suscitou em mim uma certeza e uma nova convicção ao avaliar, por exemplo, o que aconteceu depois da destruição das duas Torres Gêmeas: aquele trágico evento, momento de máxima desagregação das relações entre os homens e entre os povos, me pareceu paradoxalmente um momento em que o mundo podia dar um passo em frente rumo à fraternidade universal.

Tive a confirmação nas horas sucessivas ao terrível atentado, pelas reações e pelos depoimentos de muitos membros dos Focolares espalhados pelo mundo. Dos Estados Unidos me informavam que, mesmo no drama que sacudiu todo o país, a sociedade americana vivenciava uma solidariedade e uma disponibilidade à partilha numa dimensão a meu ver inédita. Os cristãos e os irmãos muçulmanos afro-americanos do nosso Movimento reagiram ao ódio, mostrando juntos a sua profunda e consolidada fraternidade.

Percebi reações análogas na Argélia, nos Territórios Palestinos, em Jerusalém, na África do Sul e em todas as nações da Europa. Jovens e adultos, membros de religiões diferentes, assumiram uma responsabilidade ainda mais forte e consciente, e o nosso compromisso pela unidade entre todos os homens se tornou, desde aquele dia, mais convicto e decidido.

Foi também por isso que a nossa adesão às razões e aos conteúdos das Jornadas da Interdependência foi plena. De fato, não podemos deixar de ver que a interdependência e a fraternidade são duas fases do caminho da humanidade para a sua completa reconciliação. Como escreveu João Paulo II por ocasião da Jornada mundial pela paz de 2001, exatamente “a situação atual de interdependência planetária ajuda a perceber melhor a comunhão de destino da família humana inteira”.

Escolhemos a forma mais elevada de interdependência: a unidade

Com esses pressupostos, de acordo com o Dr. Barber, com quem me senti em perfeita e imediata sintonia, gostaria de oferecer agora aos senhores algumas idéias sobre as razões, humanas e sobrenaturais, que sustentam a nossa experiência.

Há 60 anos, éramos poucas jovens, mas ainda trago muito clara em mim uma das primeiras intuições: em plena Segunda Guerra Mundial, sob um furioso bombardeio, num porão, à luz de vela, encontramos no Evangelho, única referência das nossas vidas, o Testamento de Jesus que propunha a unidade universal: “Que todos sejam um” (cf. Jo 17,21). Compreendemos que para realizar aquela página havia nascido o Movimento. Aquele “todos” teria sido o nosso horizonte: a unidade, a razão da nossa vida.

Adotar como nosso o sonho de Deus nos ligou ao céu e ao mesmo tempo nos mergulhou fortemente na história da humanidade, para fazer emergir dela o caminho rumo à fraternidade universal. Em meio à guerra, a mais dilacerante das divisões, escolhemos paradoxalmente a forma mais alta de interdependência: a unidade.

A possibilidade de realizar este ideal apresentava as suas motivações naquilo que nos pareceu uma autêntica descoberta: Deus é Amor! Um Amor que abraça todas as épocas e irmana todos os homens. Amor que foi traduzido por nós no amor recíproco, gerando uma experiência comunitária profunda. Esse mesmo Amor nos impele a procurar em primeiro lugar os mais pobres, para resolver – como dizíamos na época – o problema social da nossa pequena cidade, Trento.

Este novo olhar inclusivo sobre a cidade foi logo contagioso. Poucos meses depois já éramos 500 pessoas, de todas as idades, categoria e condição social. A unidade é o “sinal” específico da fisionomia do Movimento dos Focolares no seu interior, mas é também uma “vocação”, um chamado para todos os homens de boa vontade.

Com o passar dos anos, vieram em evidência alguns âmbitos específicos de diálogo e de partilha. Passamos a construir lugares e ocasiões de encontro no interior das Igrejas a que pertencemos, para que a “comunhão” cresça cada vez mais. Fizemos uma experiência de povo unido como cristãos de diversas denominações, que antecipa, na repartição dos dons específicos de cada Igreja, a unidade doutrinal.

Mas existe uma fronteira onde nos sentimos chamados a trabalhar de modo especial, após o dia 11 de setembro. Já começamos a enfrentar esse desafio há mais de 20 anos: é o diálogo com os fiéis das grandes religiões. Almejamos viver acima de tudo, de ambas as partes, a assim chamada “regra de ouro”: “Tudo aquilo que quereis que os homens vos façam, fazei-o vós a eles”, isso significa: amar os outros. Essa norma está presente, com diversas matizes, em todas as grandes tradições religiosas. Por fim, desde sempre, trabalhamos juntos, numa concreta colaboração, com os que não possuem um específico referencial religioso; nos une o amor pelo homem e pelos seus valores.

A fraternidade aplicada à economia e à política como resposta às grandes exigências atuais

Essa constante busca daquilo que une, esta convicção de que a união é possível, fez amadurecer no tempo pequenas e grandes realizações. Cito duas, como expressão de uma surpreendente capacidade que a fraternidade demonstra ter, se for aplicada dentro das grandes exigências do hoje.

Em 1991, nasceu o projeto por uma Economia de Comunhão, que reúne hoje 797 empresas no mundo inteiro. Elas atuam no mercado e subdividem os lucros em três partes: para ajudar os pobres e dar-lhes do que viver enquanto não encontram um posto de trabalho; para desenvolver as estruturas de formação à “cultura da partilha”; para incrementar as empresas em si. Na idéia e na experiência que alimentam a Economia de Comunhão, alguns economistas vêem uma nova chave de leitura que poderia contribuir para superar a orientação individualista que prevalece hoje.

Em 1996, consolidou-se no “Movimento político pela unidade” (ramificação do Movimento dos Focolares) um interesse pela política, que desde o início víamos como uma vocação essencial para a realização da família humana. Hoje ele é um laboratório internacional de trabalho político articulado com cidadãos, funcionários, estudiosos, políticos comprometidos em vários níveis, de inspirações e partidos diferentes, que colocam a fraternidade na base de suas vidas e, só depois, envolvem-se na ação política. Os valores fundamentais presentes nas culturas políticas estão no centro das suas ações.

A interdependência vivificada pela fraternidade torna-se motor de processos positivos

Ao longo da minha vida pude conhecer muitas pessoas, grupos, povos: sempre experimentei que a tendência do mundo para a unidade é uma aspiração insuprimível que pulsa no coração de cada homem, de cada grupo social, de cada povo. Aprendi a reconhecer os passos em frente que marcam o progresso da humanidade, até poder afirmar que a sua história nada mais que é um lento, mas irrefreável caminho rumo à fraternidade universal.

Mas a unidade é um caminho que deve ser acompanhado e sustentado. Por isso tenho a ousadia de afirmar que, entre os dons que podemos oferecer a esta II Jornada, não devemos esquecer a fraternidade, não só indicando os frutos concretos que foram produzidos pela sua conjugação na vida, mas também pelo seu significado de paradigma cultural. Vivificada pela fraternidade, a interdependência, de um simples “fato” ou “instrumento”, pode se tornar um motor de processos positivos.

A fraternidade poderá vir a ser um dom para todos e perspectiva estratégica para o bem não de um povo só, mas de toda a humanidade. Após milênios de história em que se experimentaram os frutos da violência e do ódio, temos todo o direito de pedir que a humanidade comece a experimentar quais poderão ser os frutos do amor. E não só do amor entre os indivíduos, mas também entre os povos.

Peço a Deus que nos guie e nos ampare.

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